Na varanda de um prédio de luxo, na beira-mar de Boa Viagem. Amigos nem todos abastados, se confraternizam em seu carnaval. Na avenida o Bloco da Parceria uma massa humana e colorida. A multidão de foliões sob o sol escaldante se entrega de corpo e alma ao reinado de Momo, como uma onda, seguem os trios. Roberto em seu ambiente, com cadeiras confortáveis, um cardápio regional ao seu dispor e para seus convidados. Ainda cansado do Baile Municipal, no dia anterior àquele Domingo. Ele olha para multidão abaixo e pensa:
Onde encontram tanta felicidade? Muitos não têm onde morar, nem o que comer! Vivem em um submundo que o sistema criou e os aprisionou. Não sabem como será o amanhã, mas mesmo assim fazem o passo do frevo demonstrando uma alegria sem igual. Como conseguem?
- Doutor está chegando mais um carnaval, parece que não está muito animado. Está com uma cara feia.
- Não é nada, é só mau humor da ressaca. Estou perplexo da felicidade desse povo. Uma alegria sem igual.
- São dois mundos separados e definidos, no asfalto um, aqui o outro. E te digo mais, é mais fácil um de nós descer para o mundo deles, do que um deles chegar ao nosso.
- Mas que idéia Pedro! Por que foi embora tão cedo ontem?
- Você quer dizer hoje, saí depois do show de Elba. Ontem me dei bem.
- O show de Elba foi bom, mas ela podia ter cantado mais.
- Vou beber alguma coisa, estou com a garganta seca.
Ele torna a prestar atenção no bloco. O rapaz é surpreendido com uma bela visão. Para ele uma morena se destaca na multidão. Fazendo do corpo um espetáculo à parte, dona de um belo par de pernas, que são apenas o começo do arrebatador conjunto que é a sua figura. Os seus olhos negros fazem par com o sorriso. O que o deixa desorientado.
Um gordinho de bermuda amarela e camisa estampada bate no ombro do anfitrião e dispara:
- Nosso carnaval não tem igual. Não tem carnaval no Rio de Janeiro ou na Bahia que se compare a Pernambuco. O nosso tem para todos os gostos, bailes, blocos, carnaval de rua. Olinda é um verdadeiro salão de baile a céu aberto. E o Recife Antigo agora já está firmado, sendo um dos melhores carnavais.
Notando que não estava sendo escutado, o falante se distanciou sorrindo como se tivesse escutado uma boa piada. Mas Roberto ficou desesperado, pois em meio ao grande bloco, perdera o sorriso que tanto o impressionara. Mas o sorriso agora estava no rosto que há pouco estava aflito, tornara a achar o que perdera. O bloco passou, deixando para trás uma avenida vazia e imunda. Hora daqueles que fazem de catar latas de alumínio a sua sobrevivência. No outro mundo hora da feijoada, nos primórdios era comida de escravo, agora a iguaria é servida nas mais finas mesas. Ninguém encontrava Roberto, todos perguntavam: Onde está Roberto? O procurado se encontrava entregando-se aos prazeres da carne, com a morena que pertencia ao outro mundo.
No Hospital o jovem médico fazia plantão, mas seus pensamentos só o levavam à lembrança do domingo passado. No dia seguinte faria sete dias que ele esteve com aquela mulher tão misteriosa, mas que o deixara muito perturbado e ansioso por um novo encontro. Nenhuma ligação, nenhum contato. E nem mesmo ele sabia o nome da dona de seus pensamentos:
- Quando a vejo de novo?
- Acho que não vai dar.
- Por quê?
- Nossa realidade é diferente.
- Diferente nada. Nossa realidade é o que acabou de acontecer. Quero seu telefone.
- Não tenho.
- Nem para contato... E o seu endereço?
- Me deixe no terminal de Boa Viagem, e eu ficarei bem.
- Fique pelo menos com o meu telefone.
- É, pode ser.
Nesse momento levantou-se bruscamente, o que a deixou envergonhada, mesmo também estando como ele por baixo dos lençóis. Pegou sua carteira e tirou um cartão. Riscou as letra d e r que antecediam seu nome e a entregou.
- Doutor... Doutor...
- Pode falar.
- A paciente do 301 insiste que não lhe deram seu analgésico. Quer lhe falar com urgência – a enfermeira sorriu – imediatamente.
- Vamos até lá, talvez eu resolva.
A pequena mulher com sua roupa branca foi na frente. O médico a seguiu logo depois.
A grande sala, que no sábado passado estava cheia e com muita alegria. Estava sombria, sem nenhum movimento. Cansado o médico passou, e foi direto para seu quarto. Mesmo muito cansado não conseguiu dormir logo. A fixação pouco a pouco estava tomando por completo os seus sentidos. Tão logo adormeceu, sonhou com o objeto de sua obsessão. No sonho entre sussurros e gemidos, ele inundava aquela inexplicável mulher com toda a sua paixão. Depois permaneciam abraçados, formando quase que um só corpo. O silêncio do quarto foi perturbado pelo telefone que não parava de tocar:
- Alô...
- Roberto? É o Pedro.
- Pode falar...
- São nove horas, às dez o galo vai cantar. Todos já estão indo para o camarote.
- Onde é mesmo o camarote?
- Na Praça Sérgio Loreto. Acorda.
- Certo. Daqui a pouco nos encontramos.
- A Paula vai.
- Que Paula?
- A Paulinha, a dentista, ela está na sua, é só chegar.
- Ah... Sei quem é.
- Acorda brother, acorda. O galo vai cantar.
No camarote, os amigos se encontram. Roberto olha para a multidão em sua volta, seria impossível encontrá-la ali, só um milagre. Viu passar um casal fantasiado de bombeiro. O que chamou mais a sua atenção foi o Bin Laden segurando um pequeno avião inflável, acompanhado do presidente George Bush que trazia Saddan Hussein preso em uma coleira. Só uma visão surreal como aquela, o fez sorrir, na sua angustiante busca. Carlos com sempre chega e vai logo falando:
- O carnaval é a única festa que une o rico e o pobre nessa concórdia que Momo proporciona.
- Quem?
- O Rei Momo
- Ah... O Rei...
Junto com os trios do Galo da Madrugada o tempo também passou:
- A Paulinha já foi, saiu chateada.
- Acho que eu também vou Pedro, já está na minha hora.
- Você deve saber o que faz. Amanhã tem Papangu, e você vai.
- Certo. Amanhã a gente se encontra em Bezerros.
O belo dia de sol que fez em Bezerros, tornou ainda mais reluzente as máscaras nos postes de todo o centro da pequena cidade, e também os mascarados que correm em todas as direções:
- Aí, isso aqui a cada ano fica melhor.
- É Pedro, isso aqui me lembra os nossos tempos de Olinda, quando a gente alugava sempre aquela mesma casa. A farra era boa, lembra?
- Claro, tempos bons e melhores virão.
- Olha lá Roberto. Lá vem o chato do Carlos.
- Deixa ele.
- Vocês sabem como tudo isso começou?
- Eu não. E você Roberto, sabe?
- Não, mas diga Carlos, você que de todos nós é o único que sabe essas coisas.
- No início as turmas de mascarados invadiam as casas de conhecidos, familiares e amigos, eram recebidos e lhe ofereciam angu de milho. Logo ficaram conhecidos como papa-angus, surgindo assim os Papangus.
- A conversa está boa, mas já vou indo.
- Não são nem quatro da tarde. Já reservei duas mesas no Arsenal, aquele bar na esquina da Rua Bom Jesus. Amanhã o QG é no Recife Antigo.
- Certo Pedro, amanhã a gente se fala lá. E quanto a você, professor da história do carnaval, também vá até lá.
- Irei, mas não sei muito da história do carnaval do Recife Antigo!
Vendo que Felipe já ia. Paula se aproxima:
- Você me dá uma carona? Vim com a Sônia, mas ela sumiu.
- Claro. Então vamos.
Chegando ao apartamento da dentista, aconteceu o inevitável. O médico não foi muito honesto com ela. Foi apenas o seu corpo que ele possuiu, pois na sua cabeça, só havia um sorriso que não saía das suas lembranças.
No Recife Antigo:
- Você sabe do Jairo?
- Brother, ele disse que ainda não chegou a hora de trocar Olinda por isso aqui.
- Estou querendo falar com ele.
- Mas me conta o que aconteceu ontem?
- Aconteceu o que ela queria.
- E você não?
- Eu também tenho que querer se não fica ruim de acontecer.
- Ela não deve ter gostado muito do que você fez, ainda não apareceu por aqui hoje.
O amigo sorri. Mas nesse momento surge Paula, que chega até Roberto e o beija:
- Do que vocês dois estavam falando?
- Dos blocos. – Respondeu o curioso.
Surge dois, saindo da Rua Bom Jesus e seguindo para a praça do Arsenal. O primeiro foi o Bloco das Flores:
- Esse aí foi fundado em 1920. – Gritou Carlos.
O segundo foi o Bloco da Saudade, que cantava junto com a multidão que o cercava e o seguia:
E se aqui estamos, cantando esta canção
Viemos defender a nossa tradição
E dizer bem alto que a injustiça dói
Nós somos madeiras de lei que cupim não rói.
Nas mesas alguns levantavam e seguiam os blocos. Os que ficavam dançavam de acordo com a cadência das melodias cantadas. E ainda tinha os que se beijavam apaixonadamente.
O celular de Paula toca:
- Vou ter que ir, depois que inventaram esse plantão lá na clínica, só sobra pra mim. E você rapaz, vê se liga, estou esperando.
- Vou ligar.
Quarta-feira de cinzas. Roberto chega a casa depois de mais um plantão, vai para o escritório. Sempre se sente bem sentando naquele lugar que foi de seu pai. Na televisão o Jornal Nacional dá as últimas notícias de um carnaval que já passou. Mas ele não presta atenção, a fixação que lhe acompanhou por todo o carnaval, já o está irritando.
Cordulina, uma mulher de meia-idade, mais ainda forte e robusta, fazia pouco tempo que servia aquela família. Uma tia avó de Roberto havia falecido, e ela havia ficado sem patroa e sem emprego. As dificuldades de empregados nos dias de hoje a levaram para aquele apartamento. Vendo a luz que saía da porta entreaberta, ela bate na porta:
- Pode entrar.
- O doutor quer alguma coisa?
- Sim, um café bem forte.
- O doutor se importa se a minha filha lhe serve. Ela veio me ver, e tá me ajudando.
- Faça como achar melhor.
- Aproveito e vou ver se a mãe do doutor quer alguma coisa.
A empregada se retira, e ele liga para o amigo psiquiatra:
- Jairo?
- Grande Roberto, abandonou Olinda de vez?
- Sabe como o Pedro é, acaba levando todo mundo para onde ele quer. Mas me conte como foi.
- Tenho que dar uma brecada no ano que vem, a loucura foi tão grande que não me lembro de quase nada.
- Eu não ando nada bem, passei o carnaval todo pensando em uma mulher que não sei nem o nome. Estou sentindo que isso já está me fazendo mal. É um fato que está tirando a minha concentração e já está atrapalhando minha vida.
- Passa no meu consultório amanhã no final do expediente e a gente conversa.
Batem na porta:
- Um momento, Jairo. Pode entrar.
A porta se abre e Roberto não acredita no que vê. A razão de suas angústias, que lhe tiraram a empolgação de todo o carnaval. Estava em pé à sua frente segurando uma bandeja:
- Oi. Lembra de mim? Eu sou a Lígia, filha da Cordulina.
Perplexo Roberto, não sabia o que dizer.
- Alô... Roberto, alô...
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