sexta-feira, 4 de junho de 2010

DONA FELICIDADE E SUA IRMÃ, A SORTE

O que vou contar começa aqui, com o meu corpo inerte não chão de um escritório de um bacana. Tá com um tempinho? A história é boa, tô falando, vale a pena você acompanhar. Voltemos alguns anos. Estamos em um colégio de filho de rico. Sabe aquela coisa de pobre se misturar com gente de dinheiro? Pois é, só acaba em merda. Já deu pra sacar, né? Isso mesmo, eu sou o pobre no colégio dos ricaços. Como entrei lá? Era estudioso e bom atleta, atributos maravilhosos para os diretores fazerem caridade às tuas custas. O tal dava uma bolsa de estudos, todos viam com bons olhos o ato filantrópico. E o pobre jovem, a ser massacrado pelos nobres colegas. Não podendo deixar de lembrar a inveja, dor dilacerante, que o pobre estudante sentia corta-lhe a alma. Acredite, não tem como evitá-la.

Estava eu no banheiro, quando o Márcio, aquele queridinho que arranca suspiros das meninas, e a admiração dos marmanjos. Bateu nas minhas costas sorrindo:

- Como vai amigo?

Só acreditei que era comigo, porque só estávamos nós dois ali. Ele não falava comigo nem quando eu fazia os gols, para ele, o capitão do time colocar as medalhas no pescoço:

- Lembra da Marina, aquela loirinha que senta bem na frente?

- Claro.

- Amigo, está afim de você. Sei disso porque ela contou para a Clara, namorada do Pedro que é meu chapa. Bem-vindo ao meu mundo cara, o mundo dos ganhadores.

Passei dois dias com aquela turma, todos me chamavam pelo nome, nem imaginava que eles sabiam como me chamava. Acredite, para mim foram dois dias no paraíso. Até que um deles, sorrindo com seus grandes dentes brancos, me pediu um favor:

- Tu vai ter que roubar a prova de matemática. Já está tudo esquematizado. Vai ser moleza, e nós te damos cobertura.

- Mas logo a do professor Bené. Se ele me pega nessa, me fuzila.

- Fuzila nada. Deve favores ao meu pai.

Faça sua aposta. Será que me dei bem ou mal em minha empreitada:

- Seu marginalzinho. Sabia que ia te pegar, fazia tempo que sumia minhas provas. E eu pensando que era o Pedro. Filho de um cidadão acima do bem e do mal. O diretor vai jogar você no olho da rua. Isso aqui é uma escola dos filhos de pessoas de bem. Não queremos tipo como você aqui. Demos-lhe uma chance de conviver com gente de nível. Mas como era de se esperar, meninos do seu tipo têm mesmo que estudar em colégio público.

Nunca o caminho de casa me pareceu tão curto. Não deu nem tempo de refletir o acontecido:

- Cadê o pai, mãe?

- Tá furioso.

- O pessoal da escola já ligou?

- Já, mas não é só por isso. O Duque morreu.

- Que merda! O pai era doido por esse cachorro. Morreu de quê?

- Envenenado. Aquela planta da tua vó. Ele comeu e morreu.

- Mas se era veneno, porque tinha isso aqui em casa?

- Não sei, teu pai faz todas as vontades dela. Diz ela, que acha o tal mato bonito. E disse ainda, que o chá é mais perigoso. Que mata parando o coração, mais antes maltrata com muita alucinação.

- Mas pra que a vó, quer uma coisa dessa tão violenta aqui dentro de casa.

- Pra tirar a paz daqui filho. É só o que ela sabe fazer.

O corredor naquele dia ficou mais longo, cada passo era como quilômetros. Com a mão tremula girei a maçaneta:

- Pai.

- Já sei o que você aprontou seu vagabundo, vou arrancar teu couro.

No outro dia, meu último naquele estabelecimento, tentei falar com Márcio sobre a tal menina:

- Ela nem sabe que você existe. Cara, você acreditou! Não acredito! Você não se enxerga?

Não sei por que esse acontecido me marcou tanto. Mais que isso, passou a fazer parte de mim. Nunca consegui esquecer. Até os estudos, que sempre me dava bem, perdi o gosto. O que tornou meu relacionamento com o meu pai, que já era caótico, cada vez pior. Revoltava-me a mãe dele sempre a gritar dentro de casa:

- A culpa é dela, dessa mulher que você arrumou pra casar.

Minha vida foi se fazendo em cima de uma escada de fracassos. Cada vez me levando mais para baixo. A única coisa boa de tudo isso foi Vilma, a menina mais bonita da rua. Apaixonou-se por mim, e casamos. Nunca descobri o que realmente ela viu em mim. Mas agarrei a única coisa boa que a vida me deu com unhas e dentes. Afinal também sou filho de Deus. Ou não?

Vilma é professora primária, acho que agora chama ensino fundamental I, não sei direito, nunca entendi bem essa mudança. Bom, voltando a minha senhora, coitada, levava a casa sozinha. Eu nunca conseguia muita coisa, e quando isso acontecia, sempre era muito pouco a minha ajuda.

Na saída de um shopping que tinha recebido mais um não, adivinhe quem eu encontrei. Se pensou que foi com o tal de Márcio, acertou. Para minha surpresa, ou talvez nem tanto, seu comportamento foi o de rever um grande amigo que há muito tempo não via. Acabamos em seu escritório. Ele ria muito, falava muito, e eu apenas escutando:

- Sabe aquele Pedro que te fez aquela sacanagem. Se fudeu. Morreu se empanturrando de cocaína. Não podia ser diferente. Um sacana daqueles não poderia ter outro fim.

Depois de muito papo me disse que estava investindo em turismo. Explicou-me que era o negócio mais rentável aqui no Nordeste. Sem perguntar o que eu fazia da vida, me ofereceu logo um emprego. Seria um de seus contatos. Começaria logo naquela tarde.

Se eu aceitei? Claro. Pensei logo que era a Dona felicidade enfim batendo a minha porta ao lado de sua irmã a tal de sorte. Ele me entregou as chaves de um carro que estava no estacionamento. Teria que levar apenas umas guias turísticas para alguns norte-americanos que se encontravam em um hotel cinco estrelas. Elas iriam lhes mostrar a cidade. Assim fiz. Estranhei as guias serem tão novas, não me disseram nada durante a viagem, só cochichavam no banco detrás, e riam muito. Quando cheguei ao hotel, logo na porta fui recebido por quatro senhores de ternos pretos. Identificaram-se como Polícia Federal. Eu estava preso sob a acusação de agente de prostituição infantil:

- Fazia tempo que estávamos de olho em você. Era só uma questão de tempo, a gente pôr a mão em você.

Não disse nada. Não entreguei ninguém, pois sabia que seria em vão. O que mais lamentei foi perder a minha mulher. A única coisa que me mantinha a vontade de viver. Depois disso ela nunca mais falou comigo.

Como eu pude cair no mesmo golpe duas vezes com o mesmo golpista? É fácil de saber isso. Vai ser casado com mulher bonita. Morar em prédio de Cohab, de aluguel, e para completar estar desempregado. A gente se agarra a qualquer coisa que nos aparece pela frente, mesmo duvidosa, como a única tábua de salvação em um oceano de portas na cara.

Como em um filme consegui fugir da cadeia. Passei em minha casa, depois de dias escondido. Revi minha velha mãe. Entre aquelas paredes lembrei muito da mãe do meu pai. Que já tinha morrido há alguns anos. As suas coisas, as suas maldades. Próxima parada o escritório de meu amigo de infância:

- Você?

- Sim, eu.

- O que você quer meu amigo?

- Apenas que você mais uma vez me ajude.

- Claro pode contar comigo.

- Só lhe peço mais uma coisa. Largue esse telefone.

- Certo certo.

- Quero dinheiro. Coisa pouca, só o que dê para eu me mandar e nunca mais voltar.

- Vou fazer um cheque agora mesmo.

- Cheque?

- Como sou estúpido. Desculpe-me. Acho que tenho um bom dinheiro aqui.

- Vou te pedir mais uma última coisa.

- É só dizer.

- Vamos beber um whisky juntos.

- Isso?! Certo.

- Posso preparar?

- Fique à vontade.

- Com gelo?

- Não, puro.

- Aqui está.

- Que porra de whisky tão ruim é esse? Tá amargando feito fel.

- O meu está ótimo.

- O que tem nas paredes?

- Não sei. Não estou vendo nada.

- Que porra é essa no chão?

Passei exatamente três horas sentado, observando sua agonia. Torcia-se no chão desesperadamente. Mas como alegria de pobre dura pouco, um vizinho ao sair, escutou do corredor os horrendos gemidos e chamou a polícia. Assustei-me com o barulho do arrombar da porta. Tentei fugir mais fui atingido por um único tiro.

Onde estou agora? Não sei. Como é que eu vou saber, não vejo nada, tá tudo escuro. Sabe aquela escuridão pior que breu, é isso mesmo, pois aqui é pior. Se é o céu? O inferno? Já disse, como eu vou saber? Mas sabe de uma coisa? Acho que é o céu. Por quê? Por que nunca tive tão feliz.

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