sexta-feira, 4 de junho de 2010

AROMAS

Chovia muito naquela tarde na capital pernambucana. As ruas do bairro de Boa Viagem naqueles anos de 1970, estavam se alagando a cada mais um minuto de chuva. Um Galax branco, carro dos mais abastados daquela época, mais parecia um navio devido ao seu tamanho, ao passar fazia verdadeiras ondas que banhavam as calçadas e os pedestres que nelas transitavam:

- A senhora viu no rádio madame, o boato de que a represa do Tapacurá ia transbordar. Foi aquele corre, corre.

- Em primeiro lugar, Seu. Alfredo, eu não vejo notícias no rádio, e sim as escuto. Em segundo, na entrevista para sua contratação não lhe foi dito que se contratado seus patrões dispensariam qualquer tipo de comentário de sua parte se os mesmos não lhe fossem solicitados?

- Sim madame, exatamente.

- Então como me vem agora com ousadias, me fazendo comentários de notícias de rádio sem ter sido interpelado.

- Sem ser o quê madame? Intre...

- Cale-se. Está me deixando nervosa.

- Pois não, madame. Pois não.

A criança que estava ao lado da mãe se deliciava não se sabia ao certo se era pelo banho que as pessoas que estavam na rua tomavam sem querer, ou se era pela cara de decepção do ingênuo motorista, que quis apenas agradar a sua patroa. O menino olhava para o homem que dirigia o carro e sorria de uma maneira muito cruel, jamais esperada em uma criança de oito anos:

- Mamãe...

- O que foi meu tesouro?

- Mande Alfredo fazer uma onda bem grande, que molhe todos que estão na parada de uma só vez.

- Vamos, satisfaça meu Paulinho e depois nos leve logo para casa. Claro, nos poupando de seus comentários desnecessários pelo amor do bom Deus.

A criança sorria quase de uma forma convulsiva, ao ver a fúria das pessoas que ficaram encharcadas. Enquanto a mãe olhava ternamente para seu filho. Não tomando conhecimento, do drama dos que foram molhados para uma mera satisfação de seu filho...

- Paulo. Está olhando o quê nessa chuva infernal?

- Não é nada Ricardo, só tava lembrando de uma coisa quando eu era menino.

- Já sei, pelo sorriso cínico, só pode ser alguma coisa com uma empregadinha gostosa. Certo?

- Não importa. Fale-me como foi em Madri, Ricardo. Você terá mais algum cinema.

- Não. Mas estão satisfeitos com os resultados, com o do Shopping Guararapes. Você viu como o shopping renasceu?

- Estive lá com Amanda, tivemos até dificuldade para estacionar, deveriam colocar manobristas como no outro shopping.

- Eles quando se trata de investimentos no terceiro mundo, agora chamado de em desenvolvimento, são muito cautelosos, são pilhas de estudos antes de soltar um dólar por estes lados. Mas por falar em Amanda, passei por ela, estava conversando com sua secretária. Você tem feito bem a ela, sua noiva esta cada dia que passa melhor.

- Ela deve estar interrogando, a pobre Marlene não tem sossego. Amanda pede um relatório de minhas ligações. Só se interessando pelas femininas.

- Mas vamos deixar os espanhóis por lá, e me diga como estão as coisas aqui na sua financeira.

- Os tempos difíceis para mim são bem-vindos. Com a falta de dinheiro que enfrentamos, todos recorrem a pedir dinheiro. Uma pequena parte consegue pagar. O restante, que é a maior parte, acaba perdendo para mim, o pouco que lhes restou.

- Você sempre foi muito esperto...

- Eu não, nós. Somos nós que construímos esse mundo, é justo que seja nosso o direito de usufruí-lo. É essa roda viva que cria e alimenta os sonhos da sub-raça que se molha na chuva lá fora. É com o trabalho e as esperanças deles de se tornarem um de nós, que ficamos mais ricos e mais donos da situação. – O rosto do jovem empresário, defendendo suas idéias se tornou ríspido como o de um grande déspota. – Certo?

- Eu estou louco, em dizer que não. – Os amigos sorriram longamente.

- Quanto riso no reencontro de velhos amigos. Paulo ligou para uma Carol três vezes. Quem é essa? Eu não conheço. – Quis saber a atraente mulher no curto espaço de tempo que levou entre entrar naquela sala e beijar os lábios de seu noivo.

- Você não conhece, nem eu. Deve ser alguma coisa que não chegou a mim.

- Você chega, eu saio. Tenho muito que resolver. Sempre fico atrapalhado quando volto de viagem. Depois marcamos alguma coisa para vocês conhecerem minha nova namorada.

- Você está muito cheirosa.

- Gostou... Foi o perfume que Carminha, me trouxe de Londres. Não entendo Carminha, veio em fevereiro para o carnaval em Olinda, e não voltou ainda. Está namorando um negro. Não é bem por ser negro que não gostei dele. Ele é garçom. Você acredita? Garçom. Uma menina que pertence a família que tem a terceira fortuna de Pernambuco. Que se divirta tudo bem. Mas perder tempo namorando... Aí, já é demais.

Tem gosto para tudo, meu amor. No meu caso, tenho bom gosto.

Seu mentiroso... Vamos ao cinema do Ricardo. Entre as estréias, um filme do Almodova excelente.

- Hoje não. Vamos amanhã. Não sei a que horas vou sair daqui. – A chuva continuava a cair. Lavando todas as vidraças azuis da grande torre comercial, localizada no mesmo bairro em que alguns anos atrás um galax branco, cortava as ruas com um homem simples a dirigi-lo, que apenas quis ser gentil com sua patroa.

A Rua da Concórdia durante o dia é um corredor da cidade do Recife, muito movimentado. Embora com grande parte de suas portas fechadas, devido a péssima onda que acolá o comércio. Não só nas noites quentes e abafadas de verão, mas em todas as estações. Acontece ali um outro tipo de comércio. A prostituição. Mas ao contrário de outros pontos de prostituição na cidade, naquela rua durante os expedientes das prostitutas não é uma constante a passagem de carros. Seus clientes geralmente são pedestres, pobres, geralmente embriagados de cachaça. Às vezes essa rotina é quebrada com a passagem de um carro de luxo, que geralmente pára. E solicita os serviços de alguma mulher que ali se encontra:

- Vai querer o quê bacana?

- Você.

- Serviço completo? É caro.

- Dinheiro não é problema. Onde você mora?

- Isso não interessa.

- Diga, faz parte do meu prazer.

- Longe, depois do Alto da Borborema.

- Ótimo. Entre. – Em seguida abriu a porta do carro.

No conforto do interior do veículo, o frio chegava a incomodar a gananciosa mulher. Calafrios lhe percorriam o corpo, não era acostumada aquele tipo de frio. A música suave, as luzes do painel e até mesmo o cheiro do couro dos bancos a deixaram atordoada. O bem-estar e todas aquelas sutilezas lhe eram estranhos, longe de seu mundo, era como se estivesse no céu. Tudo que ela vira e sentira dentro do carro, vinha de imediato se chocar com o aroma de seu perfume barato. Para ele, não encontraria nas melhores perfumarias de toda a Europa, um perfume que causasse um deleite tão profundo em seu ser.



Cássio Cavalcante

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